Tuesday, September 13, 2011

O voluntariado ou uma revolução interior para revolucionar o exterior

Partilho aqui um texto de reflexão publicado na Espaço Aberto - revista alternativa de Set/Out 2011







“O mundo é um lugar perigoso para viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer.” Albert Einsten

Perante o exemplo de pessoas que devotam (e devotam é mesmo a melhor forma de o designar) toda a sua vida à causa de “servir o outro” sinto-me numa posição de quase ilegitimidade para escrever e reflectir sobre “o voluntariado”.

Mas afinal o que é o voluntariado? Em que pensamos quando designamos “voluntariado”? A resposta muitas vezes não será porventura fácil ou muito objectiva.

De uma forma sempre “relativa” podemos defini-lo como:

“O voluntariado é o conjunto de açcões de interesse social e comunitário em que toda a actividade desempenhada reverte a favor do serviço e do trabalho. É feito sem recebimento de qualquer remuneração ou lucro. É uma profissão de prestígio pois o voluntário ajuda quem precisa contribuindo para um mundo mais justo e mais solidário.”(1)

Numa sociedade fortemente condicionada por padrões de cariz predominantemente individualista, meritocrático e materialista o “voluntariado” encontra um terreno algo agreste para poder crescer e ganhar raízes. Na verdade os valores principais que nos inculcam vão exactamente no sentido de, de uma forma extremamente competitiva, sermos melhores do que os outros. Estudarmos afincadamente e trabalharmos afincadamente para podermos ter acesso a bons postos de trabalho, para podermos auferir bons rendimentos, para podermos viver com um elevado nível de conforto e acesso a muitos e dispendiosos bens de consumo. Ou por vezes a questão nem se coloca em trabalharmos afincadamente mas sim em sermos “espertos”, ou “espertalhões” para ser mais preciso. O que significa vezes e vezes sem conta não olharmos a qualquer limite ético para conseguirmos atingir os nossos propósitos. A felicidade, ao que nos dizem, é vestirmos roupas de marca caras (quantas e quantas vezes fabricadas por trabalhadores explorados de forma desumana), conduzirmos uma viatura “topo de gama” (independentemente do impacto ecológico desse automóvel), termos um elevado “estatuto social” (quantas e quantas vezes baseado em relações ocas e vazias) termos @ parceir@ bonit@ “importad@” das revistas de jet7 (independentemente de ser um relacionamento baseado no apego, no estatuto ou no sexo sem qualquer vestígio de um puro e verdadeiro Amor).

Mas será que essa é a verdadeira felicidade? No dito “mundo ocidental”, apesar de termos ainda acesso a toda uma panóplia de bens e serviços que são uma longínqua miragem para a maior parte da população mundial (uma miragem tão forte ao ponto de por vezes se lançarem a atravessar os mar em autênticas “cascas de noz” para poderem chegar, mesmo que tudo o que lhes espere, quando chegam, ser uma vida de miséria e exploração, “ao nosso mundo”), o consumo de substâncias anti-depressivas (muitas das quais que mais não são do que autênticas e violentas drogas tornadas “legais” pela classe médica dominante) nunca foi tão elevado e “vulgar”. Creio que o cerne dessa infelicidade radica precisamente no materialismo individualista moderno, que nos torna em indivíduos constantemente insatisfeitos, vazios e cronicamente insaciáveis. Quando se refere materialismo é importante salientar que ele remete não somente para todo um conjunto de produtos “materiais” mas muitas vezes, senão mesmo na maior parte das vezes, todo um conjunto de valores e necessidades que pretendem, eles próprios, preencher o nosso vazio existencial.

Por outras palavras, tornamo-nos tão infelizes porque andamos profundamente alheados do verdadeiro sentido da vida. Tentamos encontrar a felicidade em todas as gratificações e aliciamentos que este sistema hiper consumista moderno tem para nos oferecer quando a felicidade radica, muito mais, naquilo que temos nós próprios para oferecer ao nosso próprio ser (num sentido de realização pessoal e espiritual mais profundo), aos outros indivíduos e seres que partilham connosco este mesmo habitat e ao nosso planeta em geral.

A realidade é que os paradigmas dominantes se têm centrado muito mais naquilo que podemos “tirar” dos outros, do nosso habitat e do nosso planeta (e temos retirado a um ritmo e com um impacto destruidor absolutamente arrepiante) e não naquilo que temos e podemos dar enquanto seres únicos e especiais, como cada ser é na sua singularidade e essência.

De uma forma geral pode-se dizer que se valoriza muito mais o “parecer” em vez do “ser”. Ou seja, todo o sistema faz-se em larga medida de imagens, aparências e muitas, mas muitas vezes, ilusões. Portugal é um país pródigo nesse estado de “encantamento” pós-consumista. Somos um dos países da Europa, quem sabe do mundo, com maior quantidade de auto-estradas (ao mesmo tempo que se deixa “apodrecer” sem qualquer investimento significativo a nossa outrora imensa rede ferroviária). Somos um dos países da Europa, e quem sabe do mundo, com uma das maiores taxas de centros comerciais por metro quadrado (ao mesmo tempo que se deixa caminhar para extinção estabelecimentos de comércio tradicionais, familiares, por vezes há gerações enraizados nas nossas comunidades). Somos um dos países do mundo com maior quantidade de telemóveis por pessoa (ao mesmo tempo que são cada vez mais os casos de idosos que morrem na mais abjecta solidão, sendo a sua morte notada somente quando os vizinhos começam a notar o fedor do corpo em decomposição). Já chega de paradoxos?

Diz-se também, e apesar de tudo, que os portugueses são um povo solidário, humano e com “bom coração”. Generalizações são sempre generalizações e entre os milhões de indivíduos que constituem a nossa população seremos certamente capazes de encontrar bons e maus exemplos disso mesmo.

É sempre difícil aferir em números muitos exactos a situação do voluntariado em Portugal. Na sua essência ele faz-se, e muito, de toda um conjunto de acções, projectos e campanhas também de carácter informal. Ou seja, um@ voluntári@ não tem necessariamente que estar registado ou desenvolver a sua actividade de voluntariado com um enquadramento “oficial”. Na realidade por vezes quanto mais “institucionais” ou “profissionalizadas” se tornam as instituições ou organizações pode haver uma tendência para a perda da essência do que é ou deveria ser o voluntariado. Noutros casos uma certa profissionalização ou organização mais estruturada, por assim dizer, pode permitir produzir uma maior eficiência em termos de projectos e acções. Mais uma vez não existem “fórmulas acabadas” ou perfeitas. Tudo está na capacidade de se encontrar um equilíbrio. Ou o “caminho do meio” como nos ensina o Budismo.

No que diz respeito ao conceito de “voluntariado” tenho de confessar que tenho, desde logo, algumas reservas no que diz respeito à utilização dessa designação. Pessoalmente tendo a ter maior simpatia pela designação “cidadania activa”. Ou seja, na minha visão pessoal o acto de “voluntariado” não se cinge, ou deveria cingir, à disponibilização de algumas horas da nossa agenda para dedicarmos a alguma acção, actividade ou organização sem fins lucrativos ou alguma causa de bem estar social e ambiental. De certa forma creio que o “voluntariado” ainda se encontra restrito a uma componente profundamente caritativa … Como explicar? Creio que é a velha máxima de que mais vale ensinar ou ajudar a plantar (isto para quem é vegetariano a analogia do “peixe” não é muito confortável do ponto de vista ético ;O) do que dar o alimento.

Ou seja, recorrendo a um exemplo: O período natalício é pródigo em acções de beneficência e solidariedade social. No período natalício parece que há um surto de uma febre que nos impele quase obsessivamente para sermos solidários. Em parte isso é bom. Por outro lado é um ímpeto em certa medida “limitado” na medida em que é inconsequente ou, muitas vezes, incoerente. Ou seja, temos por vezes indivíduos ou instituições que praticam e advogam práticas de profunda meritocracia social. Temos políticos, empresas, instituições que no seu dia a dia contribuem para uma maior precariedade e pobreza social (com o pagamento de salário baixos ou mesmo situações de eminente exploração laboral), ou com um conduta ecológica duvidosa, mas na altura de natal (e às vezes não só) surgem como os supra-sumos da beneficência e da “ajuda”. As campanhas “causa maior” e da “Leopoldina” são um exemplo incontornável. Ou seja, são empresas multinacionais, ou grandes superfícies, que se aliam a causas ou instituições de acção social ou ambiental mas no seu dia a dia praticam relações comerciais que lesam ou até eliminam comercialmente os pequenos e médios produtores (conduzindo-os muitas vezes à mesma pobreza que se gabam de ajudar a combater) ou têm uma atitude socialmente e ambientalmente bastante irresponsável, pois muitas vezes tudo aquilo que buscam é: o maior lucro possível ao menor custo possível.

Isto tudo para dizer que sim, acredito bastante no potencial do ser humano para fazer o bem. A nível individual temos exemplos extraordinários de indivíduos que isoladamente foram capazes de fazer coisas maravilhosas em prol do bem comum. E muitas vezes, para não dizer a maior parte das vezes, eles vivem no mais perfeito anonimato. Eles podem ser o seu vizinho do lado, o amigo da rede social, o jovem anónimo da escola do seu filho. Eles são milhares, milhões, e é graças a eles que todos os dias, em cada pequeno pedaço deste nosso maravilhoso planeta azul, mesmo numa época tão difícil e de esgotamento de um sistema, há magia e milagres a acontecer. Há “humanismo” naquilo que “humano” tem de melhor e mais positivo.

Acredito imenso no trabalho de muitas organizações governamentais e associações que às vezes com nada conseguem fazer quase tudo. Ao mesmo tempo que tantas e tantas vezes governos e entidades públicas, ou empresas e accionistas multi-milionários, com tudo mais não conseguem fazer do que nada. Ou então simplesmente desperdiçar e parasitar recursos que deveriam ser usados para o benefício comum de todos (um exemplo disso é o dinheiro que o nosso governo desperdiça a pagar mil e uma mordomias a gestores ou funcionários do aparelho de estado, ao mesmo tempo que usurpa, por exemplo, metade do subsídio de natal a milhares de trabalhadores que vivem num constante “tentar remediar”.)

Hoje em dia temos que ter muito cuidado nas nossas análises, percepções e visões da “realidade” (que hoje em dia é tão estruturada, por exemplo, pelos próprios meios de comunicação social, eles próprios tornados empresas de “entretenimento” e de venda de conteúdos) pois nem tudo o que parece é. E por vezes nem tudo o que é parece. E outra vezes aquilo que parece é exactamente o que é, se tivermos uma boa capacidade de estar atentos para compreendermos os fenómenos em toda a sua amplitude e profundidade.

Em suma: o voluntariado, muito mais do que acções esporádicas que muitas vezes mais não servem do que mitigar a nossa inércia quotidiana e indiferença face aos problemas e desafios de fundo da nossa sociedade, deverá passar por uma atitude cívica comprometida que se reflecte em todos os nossos actos e gestos do dia-a-dia. Como, onde e a quem comprar? O que realmente comprar ou não? Como e onde “investir” o nosso tempo … Que conteúdos consumir? etc. .

Ser voluntariado, ou activista social, é um estado de não resignação construtiva de querer “ir mais além” e de buscar reais alternativas a um sistema e a modelos de organização social que são evidentemente e cronicamente injustos e cruéis. (Que importa os senhores do Jet7 organizarem uma festa de beneficência – para exibirem os seus vestidos e penteados milionários – ao mesmo tempo que nas suas empresas ou aparelhos da burocracia estatal semeiam a pobreza, a exclusão e a destruição no nosso património natural e cultural? Que importa andarmos quase todos a sonhar ser iguais ou ter uma vida como eles?).

Ser voluntário é olhar para o que “está mal”, perceber porque realmente está mal (e muitas vezes somos nós próprios que alimentamos essas situações ou sistemas) e sobretudo ser capaz de perceber “quem” é que está realmente mal … e dar tudo por tudo, às vezes mais do que isso, para que à escala da nossa dimensão humana … as coisas, e sobretudo os seres, possam simplesmente estar bem, ou pelo menos um pouco melhor …

Nessa medida considero que “ser voluntário” ou activista (a palavra “acção” é simplesmente determinante) nunca é um processo acabado. É algo que se vai tentando ser e aprender durante toda a vida. Felizmente temos exemplos muito inspiradores a seguir para nos darem coragem. Felizmente temos também muito maus exemplos de fachada para nos ajudarem a decidir por onde não “devemos” ir. Quer uns, quer outros, têm esse tremendo potencial de nos serem úteis nessa caminhada rumo a uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária. Rumo a um planeta mais sustentável onde saibamos viver de facto em harmonia com a ecologia dos diversos ecossistemas do planeta (algo que será simplesmente impossível de alcançar num sistema capitalista em que ao invés de aprendermos a viver com o que temos, e a utilizar com respeito e moderação o que temos, somos incentivados a buscar sempre mais e a desenvolvermos quase patologicamente novas necessidades e desejos cronicamente insaciáveis).

Por vezes algumas pessoas dizem-me que não sabem como ajudar ou como poderiam viver de forma diferente. Ou seja, quais são as alternativas?

As alternativas não sou eu, nem o Economista A, ou Doutor B, ou Mestre C que as tem. Todos as temos e ninguém as tem. As alternativas são as que desvendarmos nessa caminhada, desde logo interior, rumo, antes de tudo o mais, ao sermos o melhor de nós próprios. Não a sermos melhor que os outros ou a termos mais do que os outros. Sermos o melhor de nós próprios sendo o melhor que pudermos ser para os outros. E isso de ser melhor, vezes e vezes sem conta, não é só “fazer festinhas”. Também é, e há momentos em que tudo o que podemos dar de melhor é um abraço (grátis ;O), mas também há momentos em que o melhor que podemos fazer por alguém é dar-lhe um grito na hora certa. E, sobretudo, estarmos “vigilantes” para podermos dar os muitos gritos, nas muitas horas certas, que nós próprios precisamos de dar e escutar. “Temos um mundo novo nos nossos corações” [2] e às vezes tudo o que precisamos, para encontrar um verdadeiro sentido para nossa existência, nomeadamente através da forma como contribuímos para um mundo melhor para tod@s, é precisamente “escutar aquilo que de mais profundo o nosso coração tem para nos dizer”. E é infinito tudo aquilo que nós “recebemos” quando damos verdadeiramente do fundo do nosso coração.

É difícil? É, sem dúvida, mas temos todo o resto da nossa vida (que é tudo o que realmente temos nesse estado primordial de realmente nada possuirmos) para tentar e descobrir. E porque não começar … agora?

Como? Não sabe, bem no fundo do seu coração, como o fazer?

Pedro Jorge Pereira

Formador e Activista Eco-Social

[1] Wikipedia – A Encilcopédia Livre (2011). Trabalho Voluntário. [Em linha]. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Voluntariado>. [Consultado em 15/07/2011]

[2] Durutti


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