Thursday, October 11, 2007

Sociedade do Automóvel


Um inspirador filme documental chegado do Brasil. Uma análise extremamente interessante e incisiva sobre os paradigmas desse aspecto tão crucial na organização e funcionamento das sociedades que é a deslocação e transporte, sendo que o despotismo automobilizado continua a ser um fenómeno tão entranhado e quase intrínseco naquilo que define a nossa sociedade, que nos parece tão abstracto e utópico conseguirmos imaginar, criar e viver cidades livres dessa opressão. Opressão atmosférica, de circulação, ambiental e, talvez antes de tudo o mais, cultural ... é talvez esse um dos aspectos mais interessantes exemplarmente dissertados no filme ...



http://paginas.terra.com.br/arte/sociedadedoautomovel/down.html




e mais um extracto do “Be the Change” que, na minha opinião, dificilmente poderia estar mais a propósito

Cresci e (em parte) vivi no Porto, que infelizmente é uma excelente cidade para poder verificar as proporções que o fenómeno da ideologia automóvel adquire. Mesmo ao nível da forma como as principais questões ecológicas vão sendo abordadas, creio que nunca houve uma verdadeira discussão sobre a essência deste fenómeno que, para além de todos os aspectos mais práticos e imediatos, se situa ao próprio nível cultural, ou seja, naquilo que se prende com as próprias mentalidades. Parece algo banal andar de automóvel, praticamente perdemos a capacidade de tentar imaginar como poderia ser a nossa vida quotidiana se não tivéssemos automóveis, e essa á talvez uma das mais perniciosas dependências na qual todo o nosso estilo de vida se continua a basear. Se calhar não nos apercebemos da violência que representa ter os automóveis a circular pelo meio de nós porque já nos habituámos, mas, se parássemos por breves instantes que fossem para reflectir, se calhar ficaríamos algo surpreendidos … a forma como os automóveis interferem, e prejudicam, a nossa vida quotidiana é inestimável. Sobretudo por causa deles, as cidades são como autênticas selvas urbanas (na acepção mais negativa que a expressão pode adquirir). Desde logo todo o aspecto psicológico da questão. Os automóveis são máquinas agressivas, que nos amedrontam e remetem para espaços laterais, quando as cidades deveriam ser sobretudo espaços de socialização e interacção interpessoal. Com os carros temos de nos remeter para as bermas, temos de nos remeter ao silêncio ou procurar sítios mais recatados se queremos conversar, tal é o ruído produzido pelos automóveis. Não menos importante (bem pelo contrário) é o aspecto da segurança. Sobretudo por causa dos automóveis, os nosso gestos mais singelos e simples mobilidade, tornam-se num permanente risco à nossa própria integridade física e muitas vezes à nossa própria vida. Uma simples desatenção ou menor pequeno incidente, com tais infernais máquinas a circular, pode-se tornar numa enorme tragédia. É uma prepotência enorme sobre as pessoas, é um factor crucial de deterioração das condições de bem estar humano e sociabilidade. Por vezes paro por breves instantes a contemplar algumas fotografias antigas, de épocas bem anteriores à da “automobilização” da sociedade, e observo como me parecem quase idílicas. As cidades limpas, com as ruas inundadas de pessoas, tranquilamente parando para conversar. Crianças e animais correndo livremente, canteiros e jardins onde agora existe somente asfalto e umas máquinas de lata a passar a velocidades alucinadas. Enfim, vejo aquilo que uma cidade deveria verdadeiramente ser: pessoas, contacto, encontro, espaço livre, espaço humano, espaço para a Natureza despontar aqui e além. Já não nos conseguimos aperceber da dimensão das alterações profundas que a vulgarização do transporte automóvel introduziu nas nossas vidas. Supostamente trouxe progresso, redução das distâncias geográficas, mas a questão que se coloca é: e se não tivéssemos mergulhado numa época do petróleo? Não será que se teria investido em soluções bem mais ecológicas e desprovidas de tão nefastos impactos? Basta pensar no comboio por exemplo … E, por outro lado, esse eventual progresso … será que os supostos benefícios que lhe estão associados justificam todos os problemas e impactos que lhe são implícitos? Essas problemas constituem uma lista quase interminável e vão desde o desenvolvimento de um estilo de vida sedentário - com todas as suas consequências em termos de saúde - ao excesso de poluição e ampliação exponencial da incidência de doenças do foro respiratório, passando pelos já referidos aspectos da sinistralidade, dependência energética face a um recurso não renovável e extremamente poluente como é o petróleo, não esquecendo o stress, que é talvez um dos factores mais relevantes em termos de deterioração das condições de vida nos espaços urbanos.

Pessoalmente acredito que eventualmente deslocarmos-nos mais rápido não compensa o facto de termos mais asma, bronquite e outras doenças pulmonares. Não compensa o biocídio de animais selvagens entre outros impactos ecológicos brutais que a construção de estradas implica. Não compensa todas as guerras e políticas militarista fratricidas que são despoletadas pela posse do petróleo … não compensa os terríveis desastres ecológicos causados por petroleiros a habitats ecológicos tão sensíveis como os marinhos (e é brutal a forma como nos esquecemos tão facilmente deles ou de forma tão vertiginosa deixam de estar na “ordem do dia” mediática). Não compensa o aquecimento global e a forma como está a destruir por completo toda a dinâmica natural e frágil equilíbrio ecológico do nosso planeta. Não compensa … sobretudo porque a dependência do petróleo, particularmente o interesse que existe por parte de determinados grupos financeiros em nos manter dependentes do petróleo (é daí que advêm os seus lucros milionários, da mesma forma que há poderosos grupos financeiros a lucrar com as nossas doenças) continua a estar associada a um estilo de vida e a determinados hábitos que nos parecem sempre inalteráveis e insusceptíveis de mudança. Pois bem, a mudança é, na verdade, uma das características mais primordiais de tudo aquilo que nos define como seres vivos, e não mudarmos, estagnarmos, é justamente um dos maiores prejuízos que podemos causar a nós próprios. A estagnação é contra a ordem natural da vida e do ser humano. Nesta caso em particular adquire contornos de particular gravidade pois não mudarmos o nosso estilo de vida, não modificarmos os próprios paradigmas culturais associados à frenética utilização e dependência em relação aos transportes poluentes, significa, de uma forma cada vez mais irreversível, o colapso ambiental, humano e económico da nossa própria sociedade. Parecem somente palavras, mas o que está em causa é a nossa própria sobrevivência … se calhar só iremos adquirir consciência da gravidade da situação quando ela nos afectar de forma extrema, quando o próprio estilo de vida que a ela conduziu sofrerá acentuadas modificações (ou seja, se não mudarmos “a bem” vamos necessariamente ter que mudar “a mal”).”

in Pereira, Pedro Jorge; “Be the Change you Want to See - uma outra perspectiva do mundo através do voluntariado”, (Porto, Planeta Terra: GAIA, 2006) p.33