Da sonolência do consumo à obsolência do “trabalho”
por Pedro Jorge Pereira
“As grandes firmas de relações públicas, de publicidade, de artes gráficas, de cinema, de televisão... têm, antes de mais, a função de controlar os espíritos. É necessário criar "necessidades artificiais" e fazer com que as pessoas se dediquem à sua busca, cada um por si, isolados uns dos outros. Os dirigentes dessas empresas têm uma abordagem muito pragmática: "É preciso orientar as pessoas para as coisas superficiais da vida, como o consumo." É preciso criar muros artificias, aprisionar as pessoas, isolá-las umas das outras.” [1]
Vivemos numa sociedade designada “de Consumo”. Como se o consumo tivesse assumido, por si só, uma aura e importância primordial em tudo aquilo que define a nossa sociedade enquanto tal. E a realidade é que - num processo que será tudo menos aleatório ou meramente circunstancial - ao nível cultural, político e ideológico é precisamente isso que tem vindo a suceder e a conseguir-se que suceda: as múltiplas dimensões sociológicas do indivíduo e, por inerência, de todo o colectivo social têm vindo de forma sistemática e quase até “natural” a ser reduzidas e um mínimo denominador comum: O Consumo. Enquanto dogma, valor e até instituição.
O consumo possui hoje, portanto, um significado prático e sociológico profundo em todo um contexto de neoliberalismo hegemónico à escala mundial: muito para além da sua função "pré-histórica" de satisfação de necessidades essenciais, actualmente as supostas necessidades dos indivíduos – necessidades, desde logo, de forma frequente artificialmente criadas e ampliadas até à exaustão pela poderosa indústria publicitária e departamentos de marketing das principais corporações multinacionais – são o pretexto ideal para reproduzir a disseminar o consumo enquanto instituição teológica, dogma cultural e mecanismo prático de alienação colectiva, mas por via de um crescente processo de feroz competição e estratificação individual materialista.
Ou ainda, segundo Baudrillard: “O consumo surge como conduta activa e colectiva, como coacção e moral, como instituição. Compõe todo um sistema de valores, com tudo o que este termo implica enquanto função de integração do grupo e de controlo social.” [2]
Num contexto em que os mecanismos susceptíveis de modificar e configurar toda a conjuntura mundial se encontram, de uma forma ou de outra, apropriados por um conjunto restrito de poderosas corporações – detidas, por sua vez, por um grupo muito restrito de indivíduos: “A ONU calcula que o conjunto das necessidades básicas de alimentação, água potável, educação e cuidados médicos da população mundial poderia ser coberta com uma taxa de menos de 4% sobre a riqueza acumulada das 225 maiores fortunas”. [3] - e quando os mecanismos democráticos convencionais são cada vez menos representativos e algo estéreis, numa sociedade que tende para a homogeneização - através desse propósito comum a todos que é o de consumir -, um dos poucos fenómenos que parece ainda atribuir alguma importância ao indivíduo comum é, precisamente, o consumo. Enquanto consumidores somos teoricamente bajulados por todo o género de promoções e mimos publicitários, técnicas e tácticas de propaganda que, supostamente, existem para nosso benefício e suprema felicidade. Isto porque “nós merecemos”. A apologia é quase sempre a mesma: A exaltação da liberdade individual de (suposta) escolha.
Ao mesmo tempo que esta “era” é celebrada como a era das mil e uma oportunidades e possibilidades de escolha, a realidade é que toda a cadeia produtiva desde a extracção das matérias primas até ao próprio processo de transformação, desde o transporte até ao cada vez maior “afunilamento” dos canais de distribuição, se encontra, cada vez mais, controlado pelas mesmas empresas que de certa forma nos excluem (enquanto cidadãos conscientes, informados e reivindicativos) desse mesmo processo. Dito por outras palavras: Sim, podemos ir ao “shopping” e escolher um produto entre as centenas de marcas disponíveis. Mas, por um lado, essas marcas são cada vez mais propriedade de um conjunto cada vez mais restrito de corporações multinacionais e, por outro lado, ao mesmo tempo que essas mesmas marcas despendem milhões e milhões de euros em seduzir, influenciar e até manipular “consumidores”, continuam a querer revelar muito pouco das condições de produção de muitos dos seus produtos, do impacto sócio-ecológico dos mesmos, das condições de comercialização destes (qual, por exemplo, a percentagem do lucro final que vai realmente para os produtores) e em geral da sua própria política e filosofia que se poderá reduzir em muitos casos a uma máxima muito simples: o maior lucro possível ao menor custo possível. E o “trabalho” é visto meramente como um custo que urge “a todo o custo” reduzir e até, se possível, eliminar ou o mais próximo disso possível.
Aturdidos que estamos nesse "propósito colectivo" e, ao mesmo tempo, ferozmente individualista que é o de consumir, a nossa consciência social, humana e ecológica é, sobremaneira, alienada e as próprias consequências inerentes ao consumo, sobretudo considerando a escala a que este se processa, e os efeitos sociais, laborais e ecológicos das mesmas, estão muito longe de ser percepcionadas por todos nós, elos cruciais que somos nas relações existentes entre as deploráveis condições produtivas nos sítios mais remotos do mundo (destruição de habitantes naturais, situações de exploração laboral, mecanismos económicos de neocolonialismo). Como se o nosso “consumismo ocidental” e o nosso estilo de vida individualista e essencialmente materialista (axiomas cruciais do aparelho ideológico capitalista), devessem funcionar como “farol” e inspiração para o resto da humanidade que a mais não deve aspirar do que a consumir como nós.
Em toda esta reflexão há um aspecto crucial e fundamental a ser analisado: a “obsolência” do factor trabalho.
No fundo a mensagem propalada pelo sistema é muito simples: Já não temos que nos preocupar com trabalhar, com produzir. Podemos simplesmente usufruir de toda a prosperidade desta nova ordem económica e cumprir o nosso papel enquanto consumidores vorazes. O consumo é bom para o crescimento económico. O crescimento económico, propagam quase religiosamente, há-de repercutir-se de uma forma ou de outra num certo bem-estar social generalizado. Por isso o dogma mais enraizado em todo o discurso neoliberal dominante, desde logo nos próprios meios de comunicação social - também eles obedientes, em larga medida, a uma poderosa lógica meramente comercial - é o de que tudo o que importa é crescer economicamente. Tudo o que importa é produzir em larga escala, consumir em larga escala, sem que se saiba muito bem como (com que impactos), porquê (em que é que isso realmente nos beneficia ou nos torna mais felizes) e para quem (quem realmente continua a acumular e acumular fortunas no grande “casino” capitalista global).
Em prol do crescimento económico, do maior lucro possível (que supostamente nos beneficia a todos), em prol de fórmulas e “receitas” desenhadas por tecnocratas da economia e que nem os próprios conseguem muitas vezes perceber ou explicar, num espaço de tempo relativamente curto, basicamente tem-se vindo a desenhar uma nova ordem de contornos inimagináveis há alguns anos atrás.
Em nome do neoliberalismo os governos dos diversos países têm vindo a permitir e até apoiar o abandono da própria estrutura produtiva dos países mais desenvolvidos e a sua transferência para países ditos em desenvolvimento. Apesar do impacto económico que a perda de postos de trabalho implica, sobretudo ao nível das economias locais, apesar do impacto ecológico de estarmos a “trazer” do outro lado do mundo bens básicos que poderiam e deveriam ser produzidos localmente, apesar da forma selvagem como bens e serviços públicos essenciais têm vindo a ser privatizados e levados para o domínio corporativo, tudo se justifica e legitima desde que … estejamos a crescer economicamente.
Com o pretexto de podermos competir em termos de condições laborais (entenda-se desregulamentação quase completa) com as designadas economias emergentes (e a única forma de a esse nível sermos realmente “competitivos” seria estarmos em “pé de igualdade” com aquilo que já se faz sistematicamente na própria China e “economias afins” que é criar condições tantas e tantas vezes de semi-escravatura) o “trabalho” tem vindo a tornar-se cada vez mais precário, cada vez mais “descartável”, cada vez mais tido como um custo produtivo demasiadamente elevado que urge reduzir de todas as formas possíveis e imagináveis. Se possível eliminar até. De certa forma é o que chamam da “externalização dos custos”.
“(…) as empresas não devem gastar os seus recursos finitos em fábricas que exigirão uma manutenção física, em máquinas que se degradarão ou em empregados que certamente vão envelhecer e morrer. Em vez disso, devem concentrar os seus recursos nos tijolos e cimento virtuais usados para construir as suas marcas; ou seja, nos patrocínios, na embalagem, na expansão e na publicidade. Devem também gastá-los nas sinergias: na compra de canais de distribuição e de venda que levem as suas marcas até pessoas. Esta mudança, lenta mas decidida, das prioridades empresariais deixou os produtores não virtuais do passado – os trabalhadores das fábricas e os operários especializados – numa posição precária. Os pródigos gastos dos anos 90 em marketing, fusões e extensões de marca foram acompanhados por uma resistência nunca vista ao investimento em instalações de produção e em força laboral. As companhias que tradicionalmente se satisfaziam com uma margem de lucro de 100 por cento entre os custos da produção na fábrica e o preço de venda a retalho têm percorrido o globo em busca de fábricas que possam fazer os seus produtos de forma tão barata que a sua margem de lucro se aproxima mais dos 400 por cento. “ [4]
A lógica é simples: as grandes corporações multinacionais “descartam-se” cada vez mais (desde logo com a subcontratação de empreiteiros locais nas zonas de produção e exportação geralmente em países subdesenvolvidos dos seus trabalhadores) para concentrarem todos os seus investimentos na “construção de imagem”, nas relações públicas. O que importa é antes de tudo o mais, ou exclusivamente, a “imagem”, a aura mítica que se cria, muito mais do que aquilo que realmente se faz ou se é enquanto empresa e marca. Quantas e quantas vezes mais até que a própria qualidade do produto.
Os direitos laborais e a diluição de assimetrias entre diferentes classes sociais (desde logo laborais) foram algumas das conquistas mais notáveis do século XX, que maior progresso social, cultural e civilizacional trouxeram à humanidade.
É preciso relembrar que vínhamos, até aí, de um contexto anteriormente marcadamente feudal, em que ávidos senhores feudais exploravam tantas e tantas vezes até à penúria completa os seus súbditos.
Posteriormente surgiu um contexto de vertiginosa industrialização em que essa mesma exploração feudal deixou de ser praticada somente nos campos agrícolas mas transferiu-se, em parte, para as cidades onde industriais ávidos de fortunas rápidas exploravam, muitas vezes, a numerosa mão-de-obra “barata” que fugia do campo atrás da perspectiva de um salário e melhores condições de vida nas cidades.
De certa forma essa “concentração” de numerosa mão-de-obra explorada acabou por se revelar algo “explosiva” para a classe dominante dado que veio a dar origem às inúmeras tentativas revolucionárias que marcaram o final do século XIX, início do século XX.
Sem nos estarmos a debruçar muito em detalhe sobre todas as inúmeras reflexões sócio-políticas que se poderiam efectuar, o que podemos de alguma forma concluir, sem incorrer em grandes polémicas, é que foi no século XX que se deram alguns dos mais notáveis avanços ao nível da melhoria das condições de trabalho e de protecção social, de uma forma generalizada, da maior parte da população dos países mais desenvolvidos. Direitos até aí quase impensáveis como o direito a férias, a criação do “fim-de-semana”, segurança social, igualdade de direitos e oportunidades, associação sindical, regalias e protecção social e laboral, foram quase todas “inovações” e direitos muito arduamente conquistados pelos trabalhadores no século XX. Não é que eles nunca tenham existido antes, mas de uma forma tão generalizada à maior parte da população, pelo menos no dito “Ocidente, isso sim, foi algo de muito novo que o século XX nos veio trazer.
O que o neoliberalismo nos está a trazer é uma pilhagem e destruição sistemática desses direitos tão arduamente conquistados.
O “trabalho” tem estado a viver um violento processo de precarização e tem-se vindo a tornar num “facto produtivo” descartável nas mãos dos poderosos agentes económicos capitalistas.
Aquilo que Klein [5] designa dos “McEmpregos” tem vindo a tornar-se a principal realidade laboral dos jovens em todo o mundo.
O impacto económico e social a nível local dessa tendência global é enorme. Sendo os rendimentos da maior parte da população, da designada “força de trabalho”, cada vez mais parcos é toda a vitalidade económica das suas comunidades que se encontra ameaçada.
É, aliás, importante salientar que também nos próprios países ditos desenvolvidos, existem, e cada vez mais, enormes disparidades sociais e o próprio consumo não decorre de forma homogénea mas sim, e cada vez mais, é ele próprio sintomático da existência de estruturas socais piramidais, com enormes disparidades entre o topo e as bases.
É importante pensar que, a meu ver, a dita crise económica resulta não de uma mera fatalidade ou contexto económico inopinado mas muito mais do “desastre” de determinadas políticas económicas “de choque” e paradigmas de pensamento e acção neoliberal que têm vindo a ser ferozmente implementados à escala global.
Como é que alguma sociedade que não produz sequer o que necessita poderá alguma vez aspirar a um desenvolvimento sustentável? Ou uma sociedade que manda produzir em larga escala o que não necessita?
Como é que alguma sociedade, economia, nação se poderá desenvolver realmente sem a existência das melhores condições laborais para os seus trabalhadores? Sem uma plena realização profissional dos seus cidadãos e sem a existência de oportunidades para estes poderem desenvolver o seu melhor potencial?
Será que o indivíduo essencialmente “Consumidor” (e em geral passivo), e cada vez menos “Produtor” se tornou numa realidade irreversível e intrínseca das ditas sociedades “Ocidentais”?
Será que chegamos a um ponto “de não retorno” onde tudo o que nos resta é ficarmos sentados à espera, assistindo obedientemente a tudo o que está a passar sem esboçarmos qualquer acção ou reacção à “ordem estabelecida?
Pessoalmente continuo a acreditar no génio criativo do ser humano, nomeadamente para projectar e criar uma nova ordem mundial inspirada em valores de cariz bem mais humanista, ético e fraterno.
Pessoalmente continuo a acreditar na capacidade do indivíduo, e dos cidadãos reunidos em associações, ONG´s, cooperativas e grupos informais, ser membro activo do processo produtivo, assim como poder possuir o conhecimento e controlo desse mesmo processo. Zelando para que ele possa, ao invés do que tem vindo a acontecer em larga escala, ser de facto benéfico para a sociedade no seu todo. O que implica não danificar os ecossistemas naturais e humanos. O que implica permitir que o trabalho seja respeitado, valorizado, protegido e capaz de gerar bem-estar social e económico para todos os trabalhadores.
Pessoalmente duvido que uma tal ordem possa partir dos mesmos centros de poder e decisão que têm vindo sistematicamente a criar precisamente o contrário daquilo a que se deve aspirar. Por isso parece-me óbvio que a criação de uma tal ordem tem necessariamente que partir de todos os indivíduos livres e simples que ainda têm capacidade de acreditar nos seus sonhos e em que “outro mundo é possível”, desde logo sonhando-o de forma diferente.
Pedro Jorge Pereira
Formador e Activista Eco-Social
Coordenador do Projecto EDUCACES
ecotopia2012@gmail.com
93 4476236
* Artigo realizado para Barómetro Social
http://barometro.com.pt/
Da sonolência do consumo à obsolência do “trabalho” – Parte I
http://barometro.com.pt/archives/264
Da sonolência do consumo à obsolência do “trabalho” – Parte I
http://barometro.com.pt/archives/266
Publicado Integralmente em:
http://thechange2004.blogspot.com/2011/03/da-sonolencia-do-consumo-obsolencia-do.html
[1] Chomsky, Noam; (2002), Duas horas de lucidez, Mem Martins: Editorial Inquérito.
(2) Baudrillard, J. (1996). A sociedade de consumo. Lisboa, Edições 70.
[3] Ramonet, I. (1998). The politics of hunger. [Em linha]. Disponível em