Sobre os OGMs ou nem por isso
por Pedro Jorge Pereira, ecologista social
correcção ortográfica Cristina Gomes
Para dizer ou escrever seja o que for sobre Transgénicos sinto que “devo” quase obrigatoriamente começar por referir a minha considerável ausência de conhecimentos técnicos ou científicos sobre a questão ou sobre os diversos aspectos a ela inerentes.
A “questão” dos transgénicos é uma questão que para além de todas as nuances ao nível da reflexão ética, nomeadamente sobre os paradigmas de relacionamento ser humano-Natureza, é indubitavelmente uma questão que facilmente se reveste de aspectos específicos cuja discussão se centra, de facto, essencialmente no âmbito restrito da abordagem científica. No entanto, e para ser sincero, não creio que seja necessário ser cientista ou técnico especializado para reflectir ou até para ter uma opinião bem fundamentada sobre ser favorável ou não à utilização de organismos geneticamente modificados. Na verdade, a ausência de conhecimentos técnicos aprofundados é um dos principais pretextos utilizados pelo poder político e pelo poder de uma grande parte das poderosas companhias multinacionais para conseguir afastar o cidadão comum das discussões sobre as grandes questões da nossa actualidade e, mais importante ainda, dos processos de tomada de decisão que se efectuam, numa escala cada vez mais preocupante, a um nível muito afastado dos próprios processos de decisão democráticos.
Então o que dizer sobre os transgénicos do ponto de vista não técnico?
Um dos argumentos normalmente utilizados pelos lobbies pró transgénicos é o de que, na realidade, os transgénicos nem representam nada de propriamente radicalmente diferente, dado que já há muitos anos, séculos até, o Homem procede a cruzamentos genéticos entre espécies, nomeadamente alguns dos alimentos que actualmente são parte integrante da nossa dieta correspondem a espécies que advêm do cruzamento de outras espécies. Ora, na verdade, esse cruzamento não se processa ao nível do “núcleo” das células desses alimentos, mas é um cruzamento onde o dito nível de manipulação não atinge sequer uma escala laboratorial. Por isso é um cruzamento que, diria, se aproxima de um nível algo “natural”. São “apuramentos” efectuados, essencialmente, pelos próprios agricultores através de processos algo simples e não em laboratórios incentivados, acima de tudo, pela aparente vantagem comercial dos OGMs.
A introdução dos organismos geneticamente modificados na nossa alimentação e Natureza possui o potencial de originar modificações possivelmente sem precedentes na própria história da humanidade.
O funcionamento normal dos ecossistemas implica um mais ou menos complexo conjunto de elos e relações cuja compreensão é, por definição, algo limitada. Qualquer alteração nos frágeis elos que compõem a cadeia de todo o ecossistema pode dar origem a inúmeros impactos com um grau de previsibilidade muito limitado em todos os outros elementos dessa mesma cadeia.
Ora os OGMs, pela escala sem precedentes de manipulação dos próprios genes dos alimentos, têm a susceptibilidade de originar impactos de enorme dimensão, sem que se saiba exactamente que tipo impactos, em toda a cadeia natural e ecossistemas. Ainda para mais, quando é cada vez mais evidente que não passa de um mito a possibilidade de delimitar em termos práticos a zona de abrangência de um campo OGMs à própria área desse terreno e pouco mais que áreas adjacentes. Na realidade, existem já demasiados registos de casos de contaminação cruzada a distâncias preocupantes, nomeadamente de alguns kms.
Na verdade, creio que mais do que qualquer discussão técnica, o que está em causa são os próprios princípios inerentes à produção de transgénicos, nomeadamente essa fatal e desastrosa “mania” do bicho Homem de manipular a Natureza à medida dos “supostos” interesses ou, diria antes, caprichos, mais do que existir qualquer esforço por parte do Homem de se adaptar à própria Natureza que, de forma tão incansável, o alimenta, nutre, aquece e inspira.
Neste caso, essa manipulação poderá (e infelizmente tudo indica que sim) causar impactos que se irão voltar de forma imprevisível e altamente perigosa contra a própria espécie humana. Afinal de contas, ao consumirmos produtos transgénicos, estamos a ser cobaias de uma experiência que, na prática, ninguém sabe muito bem que efeitos poderá produzir. E essa é um dos aspectos essenciais inerentes a toda a questão: o princípio da precaução, que ,de forma tão deficiente, tem sido defendido pelos poderes políticos face às mais que legítimas preocupações dos consumidores.
Pessoalmente não tenho muito a reflectir sobre a questão dos transgénicos ... parece-me que é “apenas” mais dos mesmos mecanismos de proliferação do poder económico das multinacionais sobre o respeito pela Natureza e pelo desenvolvimento sustentável da Humanidade, e mais dos mesmos mecanismos de dominação da lógica de mercado sobre qualquer lógica de bem estar social igualitário e sobre os legítimos mecanismos de expressão democrática, especialmente considerando que os dados são inequívocos: a grande maioria da população, nomeadamente a Europeia, é contra a utilização e consumo de OGMs.
A forma como os OGMs têm vindo a ser introduzidos nos nossos alimentos e mercados (sendo particularmente obsceno no caso Europeu dado que essa introdução tem vindo a ser concretizada ao arrepio e contra a clara vontade da esmagadora maioria dos consumidores Europeus) não deixa grande margem para dúvidas (se as houvesse) de quem quer mandar (e o tem vindo a fazer com largo sucesso) nas decisões que são tomadas relativamente à sociedade de todos nós: o poder das grandes companhias multinacionais está longe de ser percepcionado pela maior parte da população e, na grande maioria, estamos longe de compreender o perigo que essa espécie de neo-fascismo de mercado representa para todos nós.
Os interesses económicos (leia-se lucro) de um conjunto restrito de corporações, neste caso do importante sector agro-industrial, valem mais para os ditos decisores do que a protecção e precaução na defesa do meio ambiente, do que a própria saúde dos consumidores. Sim, porque se é óbvio que somos de facto aquilo que comemos, a realidade é que não temos a mínima ideia do que nos podemos estar a tornar se ingerimos alimentos relativamente aos quais poucas ou nenhumas seguranças existem. Bem pelo contrário.
Vem toda esta dissertação a propósito de quê?
No passado dia 17 de Agosto, um grupo de activistas do designado Movimento “Verde Eufémia” encetou uma acção de contornos poucos ou nada comuns em Portugal, desencadeando uma histérica onda de indignação e condenação por parte do poder político, dos media, e do imenso coro de vozes provenientes dos pensadores do “status quo” da nossa sacra ordem social, que, curiosamente, até esse acontecimento pouco ou nada haviam feito, dito ou sequer pensado sobre a questão dos OGMs.
A acção consistiu na destruição de parte da uma plantação de milho transgénico. A imagem que passou foi a de um “pobre” agricultor subitamente arruínado face à “fúria” de um bando de extremistas fanáticos e violentos. Pessoalmente tenho algumas dúvidas sobre a natureza de uma tal acção, nomeadamente relativamente à sua eficácia, num contexto em que o centro dos debates das grandes questões da nossa actualidade é, senão mesmo completamente estéril, pelo menos superficial. Nessa medida creio que as imagens captadas acabaram um pouco por provir a essa infeliz fatalidade da nossa actualidade: a sociedade mediática do espectáculo e do boçal entretenimento.
Subitamente a destruição de um parcela de um campo de milho transgénico era mais grave e condenável do que, desde logo, a plantação de milho transgénico independentemente das graves ameaças que esse pudesse ou não constituir às plantações não transgénicas situadas nas imediações. Do que a deficiente protecção dos direitos dos consumidores considerando a não apropriada catologação e discriminação nas embalagens dos produtos contendo OGMs.
Obviamente que a “violência” (mesmo considerando todas a subjectividade de aplicar ou não tal termo em função de variados contextos) é sempre algo condenável ... mas é condenável o escravo que queima a roça do “senhor de engenho” que o escraviza? É condenável a violência da mulher que se volta contra o marido agressor?
Foi uma acção legal? Sem dúvida que na óptica da “Lei” não foi, mas uma das principais bases da “lei” é a moral ... e infelizmente não faltam casos de leis imorais. Ou que pelo menos revelam um acentuado desfasamento temporal face à evolução das mentalidades. A abolição no tempo em que vigorou era legal, ao invés de qualquer acção de libertação de escravos, tida como ilegal, violenta, e lesiva da ordem e moral então vigente. A mudança social, nomeadamene a mudança que visa leis injustas e imorais, implica necessariamente, em muitos casos, a desobediência civil motivada pela não compactuação com leis injustas e lesivas do bem estar social e ambiental das sociedades. Pessoalmente, acredito piamente que qualquer lei que permita a introdução de OGMs na nossa alimentação, nos nossos campos agrícolas, na nossa Natureza e nos nossos mercados, ainda para mais com a agravante de haver uma gritante ausência da informação relativa a esse facto, é, para mim, altamente imoral. Será que isso dá qualquer legitimidade a um grupo de cidadãos para actuar contra essas leis imorais, nomeadamente através da destruição de propriedade privada? Não sei, pessoalmente creio que é muito relativo e pode, e deve, ser discutível. Pessoalmente creio que o valor patrimonial de um bem que é de todos nós, a nossa Natureza, é claramente mais elevada do que o valor de uma propriedade privada e, particularmente, do que o lucro de quem quer lucrar à custa da proliferação de OGMs.
A imagem do “pobre agricultor” arruínado foi, na minha opinião, uma tremenda falácia. A imagem que passou foi a de um pobre agricultor vs bando de extremistas eco-fundamentalistas quando, essencialmente, a batalha dos OGMs se trava entre um restrito grupo de consumidores, ecologistas e agricultores tradicionais contra uma complexa cadeia de jogos e interesses de poderosos grupos agro-industriais e lacaios a quem o seu poder de uma forma ou de outra provém, situem-se esses importantes aliados no poder político ou na poderosa indústria dos media corporativos.
Pessoalmente a mais considerável crítica que teço ao Movimento Verde Eufémia, talvez por ser um movimento, ao que sei, bastante recente, é a de talvez devido à ausência de alguma ponderação estratégica, ter contribuído um pouco para o aproveitamento e insidiosa vitimização que foi retirada da situação. As imagens aparentemente violentas serviram na perfeição para alimentar uma indústria e sociedade algo sedenta de espectáculo. Por outro lado a luta anti-transgénicos, só para citar o exemplo mais directamente relacionado, decorre há diversos anos pelas mais variadas e totalmente não-violentas formas sem que, até ao momento, pouca ou nenhuma atenção e consideração relevante houvesse merecido por parte da generalidade dos “media institucionalizados”, não obstante o tão cruciais e relevantes que são as questões que o debate sobre os OGMs possa suscitar.
Foi a forma correcta de agir e actuar? Não sei, sei, infelizmente, que todas as outras formas foram usadas e tentadas pela maioria do movimento de oposição à proliferação OGMs, sem que tivessem tido, até ao momento, considerável impacto ou conseguido vitórias consideráveis para além de terem contribuído positivamente para haver uma maior consciencialização sobre o assunto.
No essencial, contudo, creio que o que mais incomodou ao próprio poder político, foi uma característica peculiar desta acção e que confronta esse mesmo poder com algo em relação ao qual este tem vindo a manifestar uma enorme ausência: acção. É extraordinária a forma como paulatinamente, não obstante tão significativa rejeição da sociedade face a estes, os OGMs têm vindo a ser produzidos e gradualmente comercializados em Portugal e um pouco por toda a Europa. Num contexto de inércia, conivência e até apoio do poder político aos intentos das indústrias agro-alimentares parece-me lógico que, esgotados e esvaziados por esse mesmo poder de validade as diversas iniciativas e campanhas não-violentas encetadas pelos defensores de uma cultura e alimentação natural e não OGMs, as formas de acção mais directas, à imagem de resto do que já é comum em países onde a consciência e discussão da questão OGMs se encontra num nível bem mais avançado, passem a constituir uma forma de acção mais comum.
Existe um enorme grau de subjectividade inerente à discussão da legitimidade desse género de acções, havendo em cada acção em particular um conjunto de condicionantes e particularidades que lhe podem conferir, ou não, maior ou menor legitimidade. Subjectividade que, de resto, em nada se coaduna com a forma superficial e leviana de encarar uma acção que não pode de forma alguma ser desenquadrada de um contexto demasiado relevante para permitir a sua discussão de forma apropriada.
O próprio Estado tem vindo a destruir, e a permitir a destruição, legal de preciosos habitats naturais no nosso país, sem que, numa grande parte dos casos, se assista a qualquer esforço de impedimento ou punição face a tais crimes que persistem sendo cometidos. Os Planos Directores Municipais, entre outros planos de ordenamento territorial, são constantemente cortados e retalhados em função dos interesses especulativos imobiliários. As poucas áreas protegidas que subsistem continuam a sofrer com a construção de empreendimentos megalómanos financiados e apadrinhados por diversos ministérios. O Ministério da Agricultura permite e incentiva que OGMs sejam plantados e libertados nos Habitats Naturais. Tudo isto legalmente ... será que o valor de uma grande parte das leis vigentes é superior ao valor de realmente podermos lutar e exigir um Mundo melhor?
Quem são os vândalos, os jovens de Silves ou as buldozers e catterpillers dos grandes empreendedores imobiliários e bancos que os financiam?
Quem são os vândalos, os jovens de Silves ou as empresas químicas que continuam e libertar nos nossos habitats perigosos produtos químicos?
Quem são os vândalos, os jovens de Silves ou as empresas de celulose que continuam a protagonizar a infestação das nossas florestas com eucaliptos?
Onde reside a inconsciência? Do lado dos que protagonizam a destruição de campos OGMs ou do lado de ministérios que permitem a sua plantação sem qualquer garantia de segurança relativamente à salvaguarda de situações de contaminação (praticamente inevitável)?
Onde reside o vandalismo, na destruição do campo OGMs de Silves ou na destruição que está prestes a acontecer do último rio selvagem português, o Sabor, por intermédio da estatal EDP e outras mega instituições do betão e dos milhões com o alto patrocínio, apoio e incentivo do antigo Ministro do Ambiente, José Socrates?
O que têm conseguido os movimentos ambientalistas com acções legais e politicamente correctas para fazer face às ferozes e violentas investidas do betão e da ganância corportativa? Que protestos se têm revelado capazes de impedir seja o que for para evitar aquilo que tem vindo a suceder de forma cada vez mais impiedosa: a destruição, exploração e desprezo pelo Património Natural do nossos país? Quem são os extremistas? Os destruidores? Os imbecis?
Ficam as interrogações.
Fica ainda uma nota de reflexão relativamente à perseguição absurda que tem sido alvo uma das mais corajosas ONGAs portuguesas: o Grupo de Acção e Intervenção Ambiental (GAIA).
O GAIA preconiza, em certas situações, o recurso à acção directa não-violenta como forma de protecção da Natureza e forma de intervenção e protesto político. É um movimento inspirado na linha de actuação de Mahatma Gandhi e outros pacifistas comtemporâneos.
O GAIA é um colectivo não hierárquico e onde a opinião de todos os membros é válida e útil. Nessa medida a acção de Silves, ainda que possa ter contado com a participação de alguns elementos do GAIA, decorreu sem o conhecimento sequer de uma parte significativa dos activisas do GAIA. Decorreu numa órbitra completamente externa às decisões colectivas do grupo ou no quadro das suas acções e campanhas. Nessa medida, creio que são ridículas as responsabilidades que têm sido imputadas ao GAIA quando é claro que a acção foi planeada, executada e assumida pelo Movimento Verde Eufémia.
Moralmente o GAIA apoia determinados tipos de acções directas, como já referi, mas não existe ainda sequer nenhum consenso no seio da própria organização sobre o apoio claro e inequívoco à acção de Silves.
Dessa forma é absurda as atitudes de perseguição e condenação que o GAIA tem sofrido por uma acção que efectivamente não apoiou, na qual não tomou parte, e da qual pouco ou nada uma grande parte dos activistas sabia.
Mas é assim, a praça pública exige os seus bodes espiatórios e a sede de justiça popular (populista) remonta já aos tempos que os pelourinhos constituiam um dos principais motivos de entretenimento do povinho das aldeolas. Talvez não se tenha evoluido assim tanto desde esses tempos que para muitos são tempos ainda saudosos.
E sobre transgénicos, e outras divações, por agora tenho dito.
Não obstante a minha capacidade algo limitada de me alongar mais profundamente sobre o cerne propriamente dito das questões relativas aos OGMs existe alguma informação que, na minha opinião, é extremamente elucidativa e didáctica e que permite reflectir de forma mais fundamentada sobre a questão.
Nessa medida, creio que de leitura obrigatória é o livro da Professora Margarida Silva, uma das maiores especialistas nacionais e mesmo internacionais sobre o tema dos OGMs e biologia molecular creio, cujos dados indicativos, infelizmente, não disponho neste preciso momento.
Documentos particularmente didácticos, sobretudo para quem, como eu, pouco compreende as nuances técnicas da questão OGMs são:
FUTURE OF FOOD:
http://video.google.com/videoplay?docid=5888040483237356977
GMOs PANACEA OR POISON: http://video.google.com/videoplay?docid=5207412505897358694
Life running out of control:
http://video.google.com/videoplay?docid=1876901729566469042
Para mais informações sobre os transgénicos, visite ainda os seguintes links:
desde logo o site oficial da Plataforma Transgénicos Fora do Prato
http://www.stopogm.net/
http://www.esquerda.net/mp3/entrevista_trans.mp3
(entrevista a Gualter Baptista, um dos mais activos activistas portugueses anti-OGm e que elucida de forma muito bem estruturada muitas das questões mais cruciais sobre os OGM)
http://pimentanegra.blogspot.com/2007/09/propsito-da-no-violncia-e-das-lutas.html
(que permite reflectir de forma mais “aprofundada” sobre os contornos da acção de Silves)
http://groups.yahoo.com/group/InfoNature-Portugues/message/815
http://groups.yahoo.com/group/InfoNature-Portugues/message/808
http://groups.yahoo.com/group/InfoNature-Portugues/message/806
(dos recursos web do excelente projecto InfoNature)
http://eufemia.ecobytes.net/
(blog do Movimento ainda não formal Verde Eufémia)
e ainda o site:
http://ingenea.pegada.net
fica ainda um artigo notável escrito por um dos mais eminentes e “lúcidos” intelectuais portugueses, Boaventura de Sousa Santos, sobre o tema.
O Descodificador
Publicado na Visão em 30 de Agosto de 2007
Fonte: http://www.ces.uc.pt/opiniao/bss/190pt.php
Frequentemente, um pequeno acontecimento revela aspectos da vida colectiva que, apesar de importantes, permanecem submersos na consciência dos cidadãos e na opinião pública. A destruição de um campo de milho transgénico no Algarve é um desses acontecimentos. Através dele revelaram-se entre outras, as questões da legitimidade das lutas sociais, da propriedade privada, da influência dos interesses económicos nas legislações nacionais, do papel do Estado nos conflitos sociais, da construção social da perigosidade de certos grupos sociais e da possível nocividade dos organismos geneticamente modificados (OGMs) para a saúde pública.
As lutas sociais são frequentemente compostas de acções legais e ilegais. Os actos fundacionais das democracias modernas foram, quase sem excepção, ilegais: greves e manifestações proibidas, lutas clandestinas, insurreições militares (como o 25 de Abril), actos que hoje consideramos terroristas (como os do "terrorista" Nelson Mandela). Em certos contextos, os activistas podem escolher entre meios legais e ilegais (como no caso vertente), noutros, não têm outra opção que não a da ilegalidade.
A propriedade privada é um alvo difícil porque as concepções sociais a seu respeito são muito contraditórias e evoluem historicamente. Os primeiros impostos sobre o capital industrial não foram considerados pelos empresários como uma violação do direito de propriedade? Há violações da propriedade privada que não causam qualquer comoção social apesar de serem graves, por exemplo, os salários em atraso. No caso dos transgénicos, o tratamento do direito de propriedade apresenta contradições flagrantes. Enquanto, por um lado, a polinização cruzada faz com que culturas convencionais venham a ser contaminadas pelos OGMs, o que, sendo uma violação do direito de propriedade, não levanta nenhum clamor. Por outro lado, um agricultor canadiano, vítima de polinização cruzada, foi obrigado a pagar uma indemnização à Monsanto, empresa de sementes, por ter violado o direito de propriedade desta (a patente) ao usar sementes que tinham sido contaminadas contra a sua vontade.
Estas contradições decorrem do fortíssimo lobby das grandes empresas de sementes, cinco ou seis a nível mundial, na legislação e nas políticas nacionais. Só essa pressão explica: que Portugal - durante um tempo visto como refúgio da agricultura biológica e orgânica da Europa – seja hoje um dos seis países a aceitar os transgénicos; que a legislação portuguesa seja tão enviesada a favor dos OGMs que quase parece ter sido redigida pelos advogados das empresas; que o ministro da triste figura faça, de um campo de milho, um campo de batalha a exigir imediata ajuda humanitária; que os técnicos do Estado apaguem, como ciência, as press releases da Monsanto e escamoteiem a questão principal: se os OGMs fazem mal às borboletas e outros animais inferiores porque não accionar o princípio da precaução?
Este lobby encontra no caldo de cultura conservador da opinião pública o contexto ideal para estigmatizar a oposição aos seus interesses. E assim os activistas são transformados em "ecofascistas" ou "terroristas light".
PS: dedico esta coluna ao Eduardo Prado Coelho