Já há bastante tempo que um filme não me tocava de forma tão “visceral” e me infundia emoções tão profundas e, de certa forma, perturbadoras. Transe, sem ser propriamente um filme documental (mesmo expondo de forma tão inexorável o drama do tráfico de “carne humana”), é um perturbante (é o mínimo que se pode dizer) testemunho de uma “tragédia” quotidiana que é a exploração da miséria de milhares, milhões até, de raparigas e mulheres neste nosso planeta... milhões de rapariguinhas (algumas delas ainda mal “despedidas” de uma fugidia infância) que, face à miséria de suas vidas, poucas mais perspectivas lhes restam do que agarrarem-se à ténue esperança de um emprego num qualquer país “rico”. E face à miséria também económica dos seus países de origem, até um país pobre, como por exemplo Portugal, consegue passar por país rico... Como nos oferece paradoxos tão interessantes a ordem neoliberal em que habitamos ...
Transe é um verdadeiro soco no estômago. Um soco no estômago que em larga medida é importante levarmos, sobretudo no sentido de despertar para um drama que tem a exacta escala de cada um dos seres humanos, sobretudo mulheres, de que os seus contornos se revestem ...
E creio que é essa sobretudo a dimensão mais essencial em “Transe”: a escala individual e pessoal dessa mesma tragédia e calamidade neo-esclavagista que uma sociedade essencialmente chauvinista e patriarcal persiste em reproduzir, alimentar, ignorar ... e dela todos nós somos cúmplices com o nosso silêncio, com a nossa indiferença, com a nossa insensibilidade para o drama que se desenrola mesmo ao nosso lado, numa das boates da nossa cidade nocturna, na rua, seja onda for... porquê?
No livro acabei por abordar a questão de uma forma algo lacónica talvez pela dimensão da questão em causa, mas acima de tudo pareceu-me relevante deixar essa reflexão ... “aquela” mulher que vemos nas ruas, nas boates, na berma da estrada, é um ser humano ... um ser humano, apesar de tudo, com a sua personalidade, identidade e sonhos, que numa grande parte dos casos será bem diferente do pesadelo da prostituição ... e uma “puta” não é somente uma “puta”, uma “puta” é uma rapariguinha, uma mulher, um ser humano ...
um parágrafo mais “dedicado” à reflexão sobre o conceito de “turismo de massas”, mas de qualquer das formas, creio que a exploração de milhares de raparigas, a prostituição, não deixa de ser uma das vertentes mais relevantes do “fenómeno” do turismo de masas ...
“Estive a falar com a Joana, uma das responsáveis da agência nacional checa do programa juventude, sobre o país e particularmente Praga. Com a vulgarização dos voos “low-cost”, Praga começou a ser invadida de multidões ainda maiores de turistas, alguns dos quais somente para o fim-de-semana. A indústria do turismo de massas e outras que lhe estão inerentes: alcool, prostituição e drogas sofreu um “boom” de tal forma significativo que ocorreu uma enorme descaracterização na própria estrutura histórico-cultural da cidade, proliferando os bordeis, casas de sexo várias, lojas de bebidas alcoólicas e outras lembranças próprias de turismo de massas. O turismo, de uma oportunidade de promover a interculturalidade e aprendizagem a este nível, torna-se em algo que essencialmente torna cidades inteiras em parques de diversões para multidões de turistas. Quando era mais novo, fui várias vezes com os meus pais para o sul de Espanha e lá o turismo era bastante assim ... com um monte de “benidorms” espalhadas ao longo de toda a costa, com uma total descaracterização aos mais diversos níveis: ambiental, cultural, etnográfica. Infelizmente Portugal também não é muito diferente, basta observar no que o Algarve se tornou.
Praga é uma cidade particularmente bela, e não é propriamente agradável vê-la infestada desses turistas à procura de diversão barata, regada por litros de bebidas alcoólicas e muito sexo ... sendo as mulheres tratadas como um autêntico pedaço de carne que se paga para usar e abusar.”
in Pereira, Pedro Jorge; “Be the Change you Want to See - uma outra perspectiva do mundo através do voluntariado”, (Porto, Planeta Terra: GAIA, 2006) p.156
“Transe” - (FRA/ITA/POR/RUS) 2006 126 min – Teresa Villaverde . Ana Moreira, Viktor Rakov, Robinson Stévenin
http://www.clapfilmes.pt/transe/
A história de Sónia, uma mulher de 20 e poucos anos que abandona o namorado e a família, em São Petersburgo, na Rússia, e decide partir sem olhar para trás para tentar encontrar uma vida melhor noutro país. Sónia vai conhecer a ilusão de uma vida nova e o inferno daqueles a quem a vida parece nada ter para dar. Fazendo a sua "via sacra" Europa fora, atravessando todo o continente, primeiro pela Alemanha, depois Itália, para acabar no extremo oposto, em Portugal, ela vai conhecer toda a miséria e degradação que o tráfico e a exploração dos mais fracos provoca. Um filme sobre a exploração e o tráfico de mulheres que a realizadora Teresa Villaverde ("Os Mutantes") explica a partir das palavras de Santa Teresa de Ávila: "O inferno é um cão a ladrar lá fora". "Estamos no início do século XXI e o cão ladra em toda a parte. Não nos livrámos da tortura, da escravatura, do genocídio. A personagem central deste filme vê esse inferno de frente e de muito perto. Penso que não chega a entrar, porque é preciso fazer parte do inferno para estar lá dentro. Ela não faz parte, mas não há saída. Jorge Semprún escreveu a propósito da sua experiência num campo nazi que um dos motores da sobrevivência é a curiosidade. Se não quisermos olhar, as chamas agigantam-se."
1 comment:
Nao esquecer o bom documentario The Real Sex Traffic sobre o trafico de mulheres para a industria do sexo, disponivel no Emule.
Tambem vale a pena ver www.StopTheTraffik.org
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